O assunto ganhou força em conversas sobre o BBB 21, mas o fenômeno impacta para muito além dos muros da casa. Pessoas e empresas são canceladas diariamente e bastam alguns deslizes. Saiba como a comunicação pode ser usada para que esse fenômeno fique longe da sua empresa.
A cultura do cancelamento é notória. Influenciadores Digitais como Karol Conká e Gabriela Pugliesi que o digam. Canceladas, elas tiveram suas posturas – consideradas inadequadas e ofensivas – julgadas. Por qual autoridade? O público, internautas. A cultura do cancelamento nada mais é do que um novo nome para algo conhecido há décadas: boicote, ódio e humilhação.
O fenômeno ganhou mais força em 2017, com o movimento #MeToo, que denunciava assédio sexual e o abuso de homens conhecidos contra mulheres. Pautas ligadas a minorias e movimentos ganharam espaço para apresentar seus pontos de vista e experiências.
Em uma entrevista para o blog Unifor, Isabelle Bedê, jornalista formada pela Universidade de Fortaleza, e mestre em Negócios de Mídias Digitais pela Macromedia University, na Alemanha, fez uma análise interessante.
“A cultura do cancelamento mistura suas origens com a ‘Call Out Culture’, uma expressão usada para ‘chamar atenção’ de alguém em público por algo que tenha sido feito de errado ou inadequado, assim como a própria cultura das redes sociais em si, por ser uma ferramenta não só de socialização, mas também de ativismo”.
No Brasil, a palavra está relacionada ao cancelamento e serviços. Se o consumidor se sente insatisfeito com algum serviço ou algo, cancela. O cancelamento perde um pouco o âmbito político e vai para o marketing, SAC 2.0 ou 3.0.
Por que a cultura do cancelamento acontece?
Esse tipo de comportamento é observado em sociedades nas quais a instituição organizada política, social e juridicamente é descreditada. Então, para fazer “justiça”, a população se torna juiz, júri e executor.
Para Diogo Soares, bacharel em ciências sociais pela USP e gerente de projetos na área digital e redes sociais, a sociedade começa a justiça/legalidade se embaralharem no mundo digital. “As regras da Justiça funcionam no mundo digital ou são regras particulares?”, provoca.
O cancelamento pauta e determina os comportamentos e posicionamentos de pessoas e empresas. Esse medo alcançou as relações entre consumidor e empresa. As marcas também estão sujeitas ao tribunal da internet.
O Cancelamento de Produtos, Marcas e Empresas
Segundo estudo sobre cancelamento, realizado pela Mutato, em 2020, as empresas estão mais suscetíveis ao julgamento no Twitter. Quando o cancelamento se trata de uma pessoa, é provável que sejam homens brancos e heterossexuais.
No Brasil, um dos casos mais recentes foi do Nubank. O estopim foi o posicionamento da cofundadora Cristina Junqueira quando questionada sobre as medidas para a inclusão de lideranças negras da empresa. O cartão, queridinho entre os jovens, ficou mais roxo. Agora de vergonha.
A marca chegou a emitir uma nota de desculpas e fez acordos para a contratação e valorização de profissionais negros. Mas o erro estava feito. “A métrica para redes sociais é ‘crise’. Quem determina o certo ou errado, o público ou o privado? Onde começa e termina cada um? “, indaga Soares.
O que antes bastava “deixar de seguir” ou bloquear o perfil para não mais aparecer na linha do tempo da rede social ganhou outra dimensão no meio corporativo.
“Para isso acontecer, o público traz à tona a vergonha, a exposição”, diz Soares. E continua, “as marcas precisam entender as intenções, ambições do negócio, os valores. Grandes empresas acham que a comunicação não é uma via de mão dupla. Mas é um espaço público, é o entendimento de grupos diferentes”, afirma Soares. E completa, “Num espaço público é necessário regras/leis públicas para mediar interesses de grupos diferentes”.
Ainda de acordo com Soares, muitas marcas ainda vivem em um mundo de pessoas em frente a TV. Acontece que agora o usuário tem mais força para se contrapor. Elas precisam entender melhor estas interações.
A pesquisa da Mutato aponta que as principais discordâncias estão em três esferas: política, homofobia e mau-caratismo. Na pesquisa, 46% dos cancelados foram homens, brancos e heterossexuais. Comparados a 28% de mulheres, brancas ou negras, e heterossexuais. E, por fim, 12% de homens, negros ou brancos, e gays; e 6% de mulheres brancas, lésbicas e bissexuais.
De acordo com o levantamento, os humoristas foram os propulsores e primeiros afetados com o cancelamento, por volta de 2010. “Os boicotes não começaram a partir da criação das redes sociais. Historicamente, existem movimentos de boicote empresas; pessoas se reúnem e contestam. A ideia de que o consumidor só elogiou as companhias no passado não é verdade. Isso já existe há décadas.”, afirma Soares.
Como Evitar a Cultura do Cancelamento
1- Engajar os públicos interno e externo
Para se proteger mais dessas crises é preciso que as marcas engajem seus públicos internos e externos e os conectem aos seus valores e interações tanto quanto o oposto. Para potencializar essas mensagens-chave, as companhias podem investir em campanhas internas com foco em cultura, valores e até mesmo boas práticas em redes sociais. Esse relacionamento deve ser transparente.
2- Colocar o colaborador para refletir
É preciso colocar o colaborador para refletir sobre o motivo da postagem, orientá-lo sobre qual é a melhor forma de interagir no meio digital. Isso vai evitar constrangimentos com posts, questões éticas, que podem comprometer não só a própria, mas também a imagem da organização.
As orientações devem partir de atitudes corriqueiras para exemplificar e facilitar a compreensão. Por exemplo, ao sair para o almoço, guarde o crachá. Isso preserva tanto os dados pessoais – questão até ligada a LGPD – quanto da vida profissional.
3- Aproveite o Processo de Integração
Protocolos comportamentais podem ser compartilhados durante o processo de integração explicando que redes sociais são pessoais e que o nome da organização não deve ser envolvido nas postagens e nem estar associado a assuntos sensíveis. Explicar, exemplificar quais são os temas sensíveis.
4- A ideia não e proibir. É orientar.
Algumas companhias proíbem fotos e vídeos nos locais de trabalho, mas o caminho é entender que não existe o interno e externo. Hoje, eles são um só. Bom senso é a regra nas redes sociais. Quão mais natural o relacionamento, mais próximo o colaborador estará de sua marca e ajudará no processo de disseminação dessa imagem.
A Fragilidade do Sistema e das Leis Digitais
Em paralelo, a cultura do cancelamento escancara uma fragilidade das leis digitais que não conseguem mediar ou punir ações negativas como bullying e assédio, por exemplo. Tirar essa responsabilidade das mãos dos usuários é importante tanto para a maturidade do sistema legislativo e punitivo quanto aos próprios usuários.
Esse fortalecimento legislativo deve estar sob discussão em espaço público. As empresas privadas não podem decidir o certo e errado. “Gigantes como Facebook e Google, por exemplo, não podem definir regras sobre o que é a política do cancelamento ou mesmo o que é considerado o racismo. Isso porque além de influência, elas têm em jogo o interesse corporativo. O âmbito privado está definindo o que é crime. E isso é o que não pode. Devemos seguir a Constituição em nosso país. Isso deve ser pautado pela lei”, finaliza Soares.